II Domingo da Quaresma - Ano C
“Da nuvem saiu uma voz, que dizia: «Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O” Lc 9, 35
Sempre os montes atraíram os homens para o alto. Mais perto do céu, mais horizonte a conhecer, melhor visão da planície onde a vida acontece, mais silêncio para contemplar: tudo pode atrair e convidar a uma caminhada. No ritmo mecânico e apressado em que a vida nos engole, fazer subir o pensamento e o coração para o silêncio e a luz, para ouvir e ver melhor, é desejo de muitos. É verdade que pode ser difícil a subida, mas talvez o segredo esteja na lição do velho alpinista: “Para subir uma montanha começo por mandar à frente, lá para o alto, o meu coração, e depois é fazer com que o corpo o siga!”
Por estes dias quaresmais há quem consiga fazer um tempo de retiro. Até o Papa Francisco celebrou o 6º aniversário do seu pontificado em retiro. Penso em tantos que gostariam tanto de uma pausa assim, com o sabor de subir ao monte como Jesus, Pedro, Tiago e João. Não para fugir da vida, mas para vê-la e abraçá-la de um modo novo. Para orar, como S. Lucas refere que foi a intenção de Jesus. Para escutar melhor o Filho amado, como o Pai pede aos discípulos antes da descida. Na impossibilidade de um retiro de alguns dias, e não tendo nenhum monte à mão, não seria possível “criar” alguns “oásis” de serenidade, contemplação e escuta por entre os dias tão cheios? Com poucas coisas ou nenhumas, para que o coração, às vezes, perdido no caminho nos volte a encontrar? Assim diziam os índios brasileiros ao P. José de Anchieta que os incitara a caminhar rápido para o interior do Brasil: “Agora temos de parar, porque viemos tão rápido que temos de esperar pelos nossos corações que ficaram para trás!”
Perante a transfiguração de Jesus, esse vislumbre antecipado da sua divindade, é curiosa a referência ao sono dos discípulos. Não são os mesmos que vão adormecer quando Jesus reza no Horto das Oliveiras, antes da sua prisão e Paixão? Será um sono de cansaço ou a dificuldade de aceitar a Páscoa com o que ela implica de entrega e amor até ao fim? É a sonolência de fecharmos os olhos à verdade, de anestesiarmos o coração ao “parece tudo bem”, de passar ao lado do que é importante? No monte despertam a tempo de entrar na nuvem, de sentir medo e ouvir a voz do Pai. No Horto, Jesus despertá-los-á a tempo de também entrarem na sua Páscoa. O que nos despertará de algum sono acumulado?
A tentação de “ficar no monte” é grande. Assistir à vida sem nos comprometermos, deixar acontecer sem procurar fazer melhor, ter a fé suficiente para uma vida religiosa “pura”, “perto de Deus”, mas distante dos homens, parecem aliciantes. Mas se verdadeiramente queremos “escutar o Filho”, é preciso descer, ir ao encontro dos outros, aceitar a fragilidade e o desamparo dos nossos gestos, descobrir a alegria de criar juntos, dar oportunidades à esperança. É verdade que precisamos de descansar um pouco melhor. E também podemos ser mais simples, mais amigos da verdade, mais pacíficos. Se não mandarmos à frente o coração, como sairemos do mesmo lugar?
Pe. Vitor Gonçalves
in Voz da Verdade
As leituras deste domingo convidam-nos a reflectir sobre a nossa “transfiguração”, a nossa conversão à vida nova de Deus; nesse sentido, são-nos apresentadas algumas pistas.
- A primeira leitura apresenta-nos Abraão, o modelo do crente. Com Abraão, somos convidados a “acreditar”, isto é, a uma atitude de confiança total, de aceitação radical, de entrega plena aos desígnios desse Deus que não falha e é sempre fiel às promessas.
- A segunda leitura convida-nos a renunciar a essa atitude de orgulho, de auto-suficiência e de triunfalismo, resultantes do cumprimento de ritos externos; a nossa transfiguração resulta de uma verdadeira conversão do coração, construída dia a dia sob o signo da cruz, isto é, do amor e da entrega da vida.
- O Evangelho apresenta-nos Jesus, o Filho amado do Pai, cujo êxodo (a morte na cruz) concretiza a nossa libertação. O projecto libertador de Deus em Jesus não se realiza através de esquemas de poder e de triunfo, mas através da entrega da vida e do amor que se dá até à morte. É esse o caminho que nos conduz, a nós também, à transfiguração em Homens Novos.