I Domingo da Quaresma - Ano A
"Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.”
Mt 4, 4
Dos personagens do teatro de Gil Vicente os “diabos” dos autos das barcas, e em especial o
do “Auto da Barca do Inferno,” são dos personagens mais “católicos” que o seu teatro nos
deixou. Revelam a falsidade das aparências, conhecem as artimanhas de quem andou pela
vida a usar a religião em benefício próprio, riem-se dos convencimentos de “salvação” que
muitos reclamam e põem a nu a contradição entre a fé e a vida. No fundo, o diabo “que sabe
muito porque é velho” (sem desprimor para a velhice humana mas porque “ser velho” é uma
certa forma de recusar a luz e a graça do que é verdadeiramente novo!), vai tentando
“arrebanhar” as almas com o seu projecto de “ser deus sem Deus”! Gosto de lembrar o
famoso cartoon de José Luís Cortés em que um anjo pergunta a outro se Deus alguma vez
vai de férias, e este reponde: “Nunca. Pois poderia ser nessa altura que o demónio viesse
dizer que estava arrependido!”
Entramos com Jesus no deserto não para um exercício psicológico ou uma terapia
anti-stress. Não procuramos uma prova de resistência para sermos mais eficazes,
como muitas empresas fazem, na sua planificação por objectivos. Sem desvalorizar
tudo o que possa ajudar o crescimento pessoal e comunitário, não se trata de uma
competição. Mas somos convidados a um encontro mais verdadeiro connosco, com os
outros e com Jesus. A partir da experiência da fragilidade, a mesma que o homem e a
mulher viveram no relato da criação, e que reproduzimos a vida inteira. A própria
fragilidade de Jesus que responde à astúcia do demónio com a afirmação da sua
humanidade: Jesus não dá respostas que não possam ser também as nossas.
É interpelado se é “Filho de Deus”, e responde como um “filho de Homem”: “nem
só de pão…não tentarás…Adorarás…!”. É pela humanidade que Jesus vai revelar a
sua divindade, é pelas escolhas que estão ao alcance de cada um de nós fazer que
a graça de Deus se faz presente. Jesus começa a mostrar que é Filho de Deus
recusando o poder, o ter, a vaidade do espectáculo, e isso “baralha” o demónio, porque
só consegue imaginar Deus pelo lado da força e também sabe quanto o homem aprecia
tudo isso!
As tentações de Jesus resumem a sua vida, assim como retratam as que temos de
enfrentar ao longo dos dias. O que fazemos dos nossos medos, das insatisfações
ligadas à nossa fragilidade, principalmente quando os desejos de omnipotência querem
convencer-nos de que “tudo podemos se tudo tivermos”? A tentação do pão simboliza a
tentação de tudo reduzir à satisfação dos apetites, a buscar a felicidade no consumo sem
limites e no bem-estar egoísta. No fundo, a “pôr Deus ao meu serviço”, esquecendo
que talvez seja Deus que verdadeiramente nos falta, o Único que nos enche plenamente
porque nos ama plenamente! Talvez um dia o diabo venha a perceber isso também!
P. Vítor Gonçalves
No início da nossa caminhada quaresmal, a Palavra de Deus convida-nos à “conversão” –
isto é, a recolocar Deus no centro da nossa existência, a aceitar a comunhão com Ele, a
escutar as suas propostas, a concretizar no mundo – com fidelidade – os seus projectos.
- A primeira leitura afirma que Deus criou o homem para a felicidade e para a vida plena.
Quando escutamos as propostas de Deus, conhecemos a vida e a felicidade; mas, sempre
que prescindimos de Deus e nos fechamos em nós próprios, inventamos esquemas de
egoísmo, de orgulho e de prepotência e construímos caminhos de sofrimento e de morte.
- A segunda leitura propõe-nos dois exemplos: Adão e Jesus. Adão representa o homem que
escolhe ignorar as propostas de Deus e decidir, por si só, os caminhos da salvação e da vida
plena; Jesus é o homem que escolhe viver na obediência às propostas de Deus e que vive
na obediência aos projectos do Pai. O esquema de Adão gera egoísmo, sofrimento e
morte; o esquema de Jesus gera vida plena e definitiva.
- O Evangelho apresenta, de forma mais clara, o exemplo de Jesus. Ele recusou –
de forma absoluta – uma vida vivida à margem de Deus e dos seus projectos. A Palavra
de Deus garante que, na perspectiva cristã, uma vida que ignora os projectos do Pai e
aposta em esquemas de realização pessoal é uma vida perdida e sem sentido; e que toda
a tentação de ignorar Deus e as suas propostas é uma tentação diabólica e que o
cristão deve, firmemente, rejeitar.
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