23º Domingo do Tempo Comum - Ano C
"Quem de entre vós não renunciar a todos os seus bens,
não pode ser meu discípulo." Lc 14, 33
Atravessar o oceano e aterrar noutro continente não tem, hoje em dia, graças às maravilhas tecnológicas e ao conforto da viagem, toda a insegurança e perigo das viagens das naus de Quinhentos. E ainda que o avião tivesse o nome do descobridor destas terras de Vera Cruz, não invejo as agruras que passou para aqui chegar. Mas o imprevisto e o despojamento em todo o lado podem acontecer. E ouvir à chegada o meu nome bem articulado nos altifalantes do aeroporto, não foi sinal da alegria de ser reconhecido, mas ocasião para constatar as falhas dos "admiráveis prodígios deste século". "A sua mala ficou em Lisboa", disseram-me. E entre o sorriso e o incómodo, unido a tantos a quem isto acontece, agradeci a sugestão do meu irmão de levar na mochila uma muda de roupa. "Talvez a consigamos entregar daqui a dois dias", prometeram.
A insignificância da minha mala perdida (com alguma esperança do seu regresso) faz-me refletir no despojamento que alguns imprevistos provocam. É fácil programar a vida e criar rotinas e dependências. Algumas são importantes, mas outras acabam por adormecer a alma, e de tanto reproduzirem o mesmo ficam vazias e impedem a ousadia de criar e de amar. E se toda a experiência de perda custa, em diferentes níveis, ela é também oportunidade para reconfigurar o futuro, para acolher valores novos que se revelam, e arriscar outros passos que, de outro modo, não julgaríamos possíveis. Se "partir de viagem" tem um pouco de risco e confiança, perder a bagagem pode despertar para a surpresa e para o novo.
Recomeçamos o ritmo da vida das comunidades unido ao ritmo escolar (e a dor de tantos professores sem colocação) e, esperamos também, que coincida com o fim dos incêndios. É difícil encontrar sabedoria em todos os despojamentos. E contudo, as palavras de Jesus no Evangelho de hoje, apontam escolhas difíceis. Há um mundo novo de justiça e fraternidade que muitas "heranças" familiares impedem que se realizem. Há ânsias de poder e guerras que se travam que não são próprias dos seus discípulos. Querer seguir Jesus no conforto de um bem-estar irreal, sem uma consciência ética de transformação do que é injusto e desumano, não é possível. Que bens são estes a que nos é pedido renunciar? Que credibilidade ganhariam as palavras dos cristãos e os discursos da Igreja com esse despojamento?
Ainda sem vislumbre de mala, relembro a razão primeira desta viagem: a participação no congresso da Intercom, que homenageia Manuel Carlos Chaparro, estudioso e profissional de escrita jornalística, com raízes em Portugal e frutos em terras lusas e neste Brasil que adotou. Em constante renovação nos seus 79 anos, o amor ao jornalismo com fundamentos éticos e à responsabilidade de transformação e promoção do ser humano, foram beber também à Boa Nova de Jesus e ao empenho na JOC parte da sua inspiração. E tantas coisas nasceram de alguns despojamentos!
P. Vítor Gonçalves
"A Voz da Verdade"
A liturgia deste domingo convida-nos a tomar consciência de quanto é exigente o caminho do “Reino”. Optar pelo “Reino” não é escolher um caminho de facilidade, mas sim aceitar percorrer um caminho de renúncia e de dom da vida.
- É, sobretudo, o Evangelho que traça as coordenadas do “caminho do discípulo”: é um caminho em que o “Reino” deve ter a primazia sobre as pessoas que amamos, sobre os nossos bens, sobre os nossos próprios interesses e esquemas pessoais. Quem tomar contacto com esta proposta tem de pensar seriamente se a quer acolher, se tem forças para a acolher… Jesus não admite meios-termos: ou se aceita o “Reino” e se embarca nessa aventura a tempo inteiro e “a fundo perdido”, ou não vale a pena começar algo que não vai levar a lado nenhum (porque não é um caminho que se percorra com hesitações e com “meias tintas”).
- A primeira leitura lembra a todos aqueles que não conseguem decidir-se pelo “Reino” que só em Deus é possível encontrar a verdadeira felicidade e o sentido da vida. Há, portanto, aí, um encorajamento implícito a aderir ao “Reino”: embora exigente, é um caminho que leva à felicidade plena.
- A segunda leitura recorda que o amor é o valor fundamental, para todos os que aceitam a dinâmica do “Reino”; só ele permite descobrir a igualdade de todos os homens, filhos do mesmo Pai e irmãos em Cristo. Aceitar viver na lógica do “Reino” é reconhecer em cada homem um irmão e agir em consequência.
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