27º Domingo do Tempo Comum - Ano C
“Aumenta a nossa fé”. Lc 17, 5
“Fé é crer o que não vemos… / Pela glória que esperamos, / amar o que não compreendemos, / nem vimos, nem conhecemos, / pera que salvos sejamos. […] Fé é amar a Deus, só por ele, / quanto se puder amar…, / por ser ele singular / nam por interesse dele.” É deliciosa esta definição da “fé” dada por Gil Vicente no seu “Auto da Fé”, que pode abrir o horizonte de muitas outras formulações, mas também interpelar-nos: “o que digo da minha fé”?
No itinerário para Jerusalém, os discípulos pedem a Jesus que aumente a sua fé. Têm dificuldade em entender e aceitar a sombra da cruz que paira sobre a missão do seu Mestre. Precisam confiar mais em Deus e mais em Jesus. O medo aprisiona a sua sede de perguntar, e sentem abaladas as certezas que tinham. Custa-lhes deixar de acreditar em algo para acreditar em Alguém, deixar os apoios externos para apoiar-se na presença viva de Jesus. Não se trata de “mais” fé, mas de “melhor” fé, que tem a força surpreendente do pequeno grão de mostarda!
Não se trata da fé “para” fazer milagres espetaculares, da fé “ao serviço” dos nossos interesses, mas da relação viva de “amar a Deus, só por ele”. E esse amor é colaborar no seu projecto de fazer a vida mais humana, inventando as formas de ser sal, luz e fermento no mundo que é amado por Deus. Precisamos da “melhor” fé para “mover” as montanhas mais pesadas e altas, que são aquelas que cada um de nós deixa crescer por dentro do coração e do pensamento, como se Deus não habitasse desde sempre no nosso íntimo.
É também “a fé que procura entender” (como dizia S. Anselmo), que se enriquece com a inteligência e o sabor do conhecimento. Mas sem cair numa “ciência que incha”, ou numa pretensão de possuir a verdade. Por isso tem de ser um saber que ama, que escuta e dialoga, e um sabor que se testemunha humildemente. É um saber que gera comunhão, sem muros nem fronteiras, alegre pelas “sementes de verdade” que o Espírito faz germinar em todos, e nos faz caminhar como discípulos de Jesus Cristo numa Igreja aberta ao Espírito e em diálogo com todos.
É a fé também que se faz serviço, e encontra na alegria do bem que se faz a maior recompensa. Sem querer acumular méritos, nem cair na armadilha das comparações, multiplica os dons recebidos e espalha-os numa entrega generosa porque reconhece que foi Deus quem os pôs nos corações de todos. E daí nasce a humildade capaz de dizer: “fizemos o que devíamos fazer”. S. Tiago dirá: "Mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé” (Tg 2, 18).
Na Palavra de Deus que hoje nos é proposta, cruzam-se vários temas (a fé, a salvação, a radicalidade do "caminho do Reino", etc.); mas sobressai a reflexão sobre a atitude correcta que o homem deve assumir face a Deus. As leituras convidam-nos a reconhecer, com humildade, a nossa pequenez e finitude, a comprometer-nos com o "Reino" sem cálculos nem exigências, a acolher com gratidão os dons de Deus e a entregar-nos confiantes nas suas mãos.
- Na primeira leitura, o profeta Habacuc interpela Deus, convoca-o para intervir no mundo e para pôr fim à violência, à injustiça, ao pecado... Deus, em resposta, confirma a sua intenção de actuar no mundo, no sentido de destruir a morte e a opressão; mas dá a entender que só o fará quando for o momento oportuno, de acordo com o seu projecto; ao homem, resta confiar e esperar pacientemente o "tempo de Deus".
- O Evangelho convida os discípulos a aderir, com coragem e radicalidade, a esse projecto de vida que, em Jesus, Deus veio oferecer ao homem... A essa adesão chama-se "fé"; e dela depende a instauração do "Reino" no mundo. Os discípulos, comprometidos com a construção do "Reino" devem, no entanto, ter consciência de que não agem por si próprios; eles são, apenas, instrumentos através dos quais Deus realiza a salvação. Resta-lhes cumprir o seu papel com humildade e gratuidade, como "servos que apenas fizeram o que deviam fazer".
- A segunda leitura convida os discípulos a renovar cada dia o seu compromisso com Jesus Cristo e com o "Reino". De forma especial, o autor exorta os animadores cristãos a que conduzam com fortaleza, com equilíbrio e com amor as comunidades que lhes foram confiadas e a que defendam sempre a verdade do Evangelho.